segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O menino e as lentes



Um dia desses, eu resolvi pôr minhas lentes de contato e ir ao shopping. Estava de férias, queria passear um pouco. Eu acabo usando pouco as lentes, visto que tenho olho seco e não as tolero usando muitos dias seguidos.
Estava então eu na parada de ônibus, quando chegaram ali umas três moças e um garotinho se uns... sei lá... quatro anos... Conversavam bastante, um pouco alto talvez, mas nada que incomodasse.
Quando ponho as lentes tenho que, vez ou outra, por umas gotas de colírio, então as pus. O líquido caiu no meu olho e escorreu por minhas faces.
O garoto me olhou fixamente, depois disse:
_ Ei, tem algo escorrendo do seu olho.
Eu respondi com um "eu sei" e enxuguei as maçãs do rosto.
A mãe, com voz toda doce falou:
_ Filhinho, é que o titio está com dor no olhinho e tem que colocar remedinho pra curar o olhinho.
O menino, surpreendendo-se com o que a mãe havia dito, reclamou:
_ Olhinho?! Ele não tem olhinho! Ele tem olhão!
Eu sorri e disse:
_ Claro. Eu tenho olhão. Tu é que tens olhinho.
Ainda sério, ele respondeu:
_ Olhinho quem tem é bebezinho!
Ou seja, nem ele, a despeito do que pensasse a mãe, tinha olhinho.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Funeral para a Leda

Lembro que, quando eu era adolescente e tinha que decorar alguma regra ou alguma fórmula difícil, a gente recorria aos chamados "processos mnemônicos" para fazer isso. Por exemplo, se eu queria lembrar para a prova a regra de acentuação das paroxítonas era só lembrar de "um xiru não lê ditongo". Uma frase completamente desprovida de sentido, é verdade, mas com certeza ajudava bastante. Com ela podia-se lembrar que levam acento as paroxítonas terminadas em UM, X, I, R, U, N, ÃO, L e ditongo. Claro que não estão aí todas as paroxítonas acentuadas... Ficam de fora as em PS, as em Ã, por exemplo, mas lembro que já ajudava bastante.
De uns tempos pra cá, criou-se um mito em educação de que não se pode decorar nada, que decorar não serve para nada, que se você decora você esquece, que se você aprende você não esquece nunca mais... Tudo balela, mas amplamente divulgada infelizmente. Primeiro porque memória também é um tipo de inteligência. Segundo, porque várias coisas que sabemos para sempre são decoradas. Terceiro, porque se esquecem coisas aprendidas também... o que faz com que você esqueça ou não algo tem mais a ver com a ligação afetiva que você tem com o conceito/objeto apreendido, com a importância dada àquilo por você, com a quantidade de vezes em que você usou... tem mais a ver com tudo isso do que com a suposta diferença entre aprender e decorar.
Eu sei o meu endereço por que o aprendi? Não. Eu sei porque o decorei. Eu não rezo o "Pai Nosso" há uns dez anos, mas ainda o sei por que o aprendi? Não, eu nunca paro para pensar no que significa, eu simplesmente o decorei.
Claro que o processo de aprendizagem não passa apenas pelo processo de decorar. Decorar só não é muitas vezes o suficiente. Tem que se decorar e estabelecer relações.
Eu decorei no ensino médio "Prometa Ana telefonar." para decorar que as fases de divisão celular são "prófase", "metáfase", "anáfase" e "telófase". Como apenas decorei isso, não me resolve para nada. Sei até hoje, mas não faço mais ideia do que acontece em cada uma dessas fases. Ou seja, decorei, mas não fiz as relações necessárias.
Para as novas gerações, para as quais decorar virou algo feio, bobo e cara-de-mamão, o que vou dizer não fará sequer sentido, talvez, mas, para mim, fã dos processos mnemônicos, foi uma tristeza saber que um deles não tem mais razão de existir com a implantação do Novo Acordo Ortográfico.
Além de viuvinha do trema, e de confessa dificuldade em suprimir o acento agudo dos ditongos abertos "ói" e "éi" nas paroxítonas, também fiquei triste, com esse novo acordo, com a morte da Leda.
Para decorar que levavam acento circunflexo no primeiro "e" os verbos "ler", "dar", "ver", "crer" e seus derivados, a gente decorava que "Leda vê e crê".
Eu chegava até imaginar uma imagem, uma história para a tal Leda. Seria ela uma crédula, que acredita em tudo o que vê? Ou talvez uma decendente de São Tomé, que precisava ver para crer? Não sei, mas sempre a imaginei uma senhorinha magra, de camisa creme com rendas na gola,fechada até o pescoço, uma saia preta abaixo do joelho, um terço na mão, coque, indo todos os dias na missa e dizendo "Senhor, eu vejo e eu creio!"
Creu tanto e acabou sucumbindo às novas regras de acentuação e ao repúdio pelo que passou a ser chamado de "decoreba".
Descanse em paz, dona Leda. Eu, de minha parte, continuarei telefonando para a Ana e tentando tratar o triste problema do tal Xiru, que não consegue perceber os ditongos na hora da leitura.