sábado, 13 de setembro de 2014

O resgate da infância

Ao assistir uma exposição de poemas do Quintana, reli, entre outros um dos poemas mais clássicos dele e que me marca muito (e provavelmente a muita gente). Transcrevo-o a seguir:

RECORDO AINDA

Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada afora após segui...
 Mas, aí,Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!...

Eu digo sempre que ficar adulto é abrir mão de sonhos. Quando a gente é criança ou adolescente a gente espera muitas coisas da vida. Esperamos um amor verdadeiro. Esperamos trabalhar com aquilo que gostamos. Sonhamos fazer cursos, viagens, ganhar dinheiro... Poderia passar páginas citando possibilidades.

Quando crescemos a vida muitas vezes nos empurra para outros lados. O emprego dos sonhos muitas vezes é  substituído por um que nos sustente... O amor verdadeiro por vezes não resiste ao tempo... Viagens precisam ser adiadas... e nem tudo vai seguir da forma com que sonhamos. É o natural da vida. Precisamos pagar contas. Precisamos nos vestir, comer, morar. E a vida vai indo em direção a necessidades muito mais simples. 

Claro que algumas coisas são realizadas. Às vezes não exatamente da forma sonhada, mas são. Mas é um trabalho às vezes lento. Outros sonhos, que nos eram essenciais na juventude são colocados de lado em nome de realizações mais concretas e de repente já nem mais nos lembramos que um dia achávamos que não poderíamos viver sem aquilo. 

Em certo ponto essa perda de sonhos é natural e até necessária. A vida provavelmente é muito mais simples, boba e curta do que nossa juventude dimensionava.

Mas talvez, em algum momento, mais maduros, possamos tentar resgatar essa criança que acabou se perdendo com a vida. Talvez até tenhamos que resgatá-la para que possamos estar em paz com nós mesmos. 

Buscar velhos sonhos esquecidos. Correr atrás de certos ideais que ficaram adormecidos. Suavizar nossos corações endurecidos pela necessidade. Voltar a sonhar. De uma forma mais madura, sem tanto desespero, esperando galgar degraus menores, mas caminhando em direção daquilo que gostamos, do que nos faz sentir que somos a gente mesmo.

Envelhecemos de repente, mas podemos brincar novamente. Somos velhos, mas nos descobrimos meninos. Ainda temos esperanças. Ainda sonhamos. Ainda esperamos coisas da vida. 

terça-feira, 1 de julho de 2014

Saudades da infância



“Ai que saudades que tenho,
             Da aurora da minha vida,
             Da minha infância querida,
             Que os anos não trazem mais.”

Esse poema é emblemático porque trata de algo que nos mexe muito, que é uma saudade bucólica de uma infância idílica. (Bonito isso, não?) Quase todo mundo volta e meia se pega pensando nos seus primeiros anos de vida e no quanto eles eram melhores que hoje. Não havia responsabilidades, não tinha que trabalhar, não havia contas a pagar, apenas brincava-se, ria-se e era-se feliz. Volta e meia aparecem pela Internet textos que dizem que a infância de antigamente era melhor que a de hoje, que, naquela época brincava-se de verdade, que não se sofria bullying, que tudo era perfeito.  A gente tende a imaginar uma infância perfeita e a ter saudades dela.
Mentiras que nos contamos.
Eu sofri bullying sim e não me foi fácil. Ser o nerd da escola, o c.d.f., o que tira as melhores notas teve seu preço. A falta de sociabilidade também.  Sobrevivi? Sim. Mas não sem alguns traumas. Talvez não existissem terapeutas se as infâncias de antigamente tivessem sido tão felizes quanto alguns as anunciam.
Ao fim e ao cabo temos saudades de uma infância que nunca existiu e que nós criamos talvez porque seja tão reconfortante acreditar que em algum momento da vida fomos felizes, tanto quanto pensar que teremos uma eternidade tranquila após nossa morte. Viemos de um lugar feliz. Voltaremos a uma felicidade completa. No caminho, as dificuldades.
Claro que há coisas em minha infância de que tenho saudades. Correr de bicicleta por tudo naquela cidade pequena;  jogar bola na praia... ou raquete; ter mais tempo para desenhar, para escrever textos... Poderia listar mais coisas. Mas não vem ao caso. A questão é que eu poderia também fazer uma lista igualmente grande (senão maior) de coisas que não me agradavam. Essa felicidade (naquela época ou hoje) existiu, mas em alguns momentos aqui e ali, não como uma constante. A felicidade é a exceção, não a regra. Assim como  a tristeza também, felizmente. Na maior parte do tempo a gente vive em algum estágio entre esses dois sentimentos tão idealizados. A gente se frustra, a gente se satisfaz, a gente teme, a gente se realiza, a gente deseja... Na maior parte do tempo temos sentimentos bem mais concretos (que muitas vezes nem sabemos nominar) do que gastando nosso tempo sendo felizes ou tristes.
Somos, na maior parte das vezes um conjunto de sentimentos desconexos, misturados e, por vezes, até conflitantes. Não fomos felizes o tempo todo. Sofremos, penamos, nos desesperamos. Porque crescer é sofrido, viver é difícil. A vida, muitas vezes, dói. Tanto que muitas pessoas recusam-se a crescer. Viram adultos e mantêm-se crianças. E aí sofrem também. Porque ser criança também não é tão fácil assim. Ainda mais para um adulto.

sábado, 19 de abril de 2014

O mar e o Mar...ne



Quando criança, vivi em uma cidade próxima do mar. Íamos no verão pra praia, primeiro de barraca, ficando no pátio da casa de alguém, para poder usar o banheiro.  Odeio barracas até hoje. Não me convidem para acampar: não é decididamente algo que me encante.
Depois meus pais compraram uma casinha bem simples. Não tinha tevê, telefone, nada... no começo, nem água encanada.  Mas era divertido. Acordordava de manhã, ia comprar pães na padaria. Depois do café, íamos para a praia. Eu ficava horas dentro d’água naquela época. Ir de tardezinha para a praia, com aquele friozinho praiano, olhar o mar me fascinava.
São duas maravilhas naturais que sempre me fascinaram: o mar e suas ondas batendo na praia e as tempestades.
Quando era criança e sabia que viria tempestade, ficava horas sentado à janela olhando as formações de nuvens maravilhado. Era um espetáculo que eu não podia perder.  Sempre fui desatento para algumas coisas, mas para outras poderia ficar horas sem sair do luguar. Olhar a tempestade se formando era uma delas.
O mar também. Até hoje olhar para o mar me acalma. Pode estar tempo nublado, até um pouco frio. Não me importa. Só de ficar olhando para o mar, já fico mais tranquilo, meus problemas somem temporariamente. Não sei nadar. Nunca aprendi. Não suportaria hoje ficar horas enfiado dentro do mar.  Gosto de praias com cidade, onde eu possa ir um pouco para a praia, mas passear na cidade também. Não ficaria mais uma tarde inteira sentado frente ao mar talvez. Mas molhar meus pés na água salgada, sentir o vento litorâneo, tocar os meus pés na areia... e, principalmente, olhar aquele gigante assustador com grandes ondas, aquele infinito imponente em minha frente... aquelas ondas batendo na areia talvez dê a dimensão do quão pouco eu sou e o quão pouco meus problemas valem... E isso me acalma.
Eu digo desde a adolescência que me sinto um pouco velho. Sempre me senti assim. Não tão efusivo como os outros (esses outros imaginários que povoam nossa mente e com os quais a gente se compara). Sempre fui um tom a menos talvez. Mas ao olhar pro mar o velho vai embora e a criança aparece. Uma criança maravilhada com aquele colosso. E a criança sorri por dentro.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

A humilde residência




Você já  notou que  muitas músicas populares (as chamadas músicas chiclete) dos últimos tempos têm mais ou menos o mesmo texto?

Observe:

 Vou te esperar
Na minha humilde residência
Pra gente fazer amor
Mas eu te peço só um pouquinho de paciência,
A cama tá quebrada e não tem cobertor


No texto em questão, interpretado pelo Michel Teló, o “eu lírico”  reclama da mulher de quem gosta de que ela melhorou de vida e não se interessa mais por ele, porque ele não terminou seus estudos, não tem carro, não tem dinheiro, não tem nada... Mesmo assim ele a convida para sua “humilde residência” para fazerem “amor”, mesmo que sua cama sequer comporte essa possibilidade.

Vejamos outra pérola do cancioneiro nacional, dessa vez na voz de João Neto e Frederico:

Não tenho grana
Não tenho fama
Não tenho carro
Tô de carona

O meu cartão
Foi bloqueado
E o meu limite
Tá estourado

Sou simples
Mas eu te garanto
Eu sei fazer um Lê Lê Lê


Nessa música, o “eu lírico” diz para sua amada que ele não tem dinheiro, carro ou qualquer outro bem, mas que ele é bom de sexo, pelo que se supõe.

Eu não tenho carro, não tenho teto
E se ficar comigo é porque gosta
Do meu rá rá rá rá rá rá rá lepo lepo
É tão gostoso quando eu rá rá rá rá rá rá rá o lepo lepo


Nesse sucesso do Psirico, o personagem também diz que não tem nenhum bem material, mas sabe fazer “lepo lepo”, que, mais uma vez, supõe-se que tenha teor sexual.
Note que, apesar dos ritmos diferentes, de algumas palavras diferentes, o texto das três músicas é praticamente o mesmo. Poderíamos dizer até que se trata da mesma música  maquiada de formas diversas.
Quanto à última música, eu brinco que “Se ficar comigo é porque gosta”... de sofrer! Tudo bem que não se pode querer namorar, casar ou até sair com uma pessoa porque ela tem grana, um carro, um bom apartamento, porque pagará a conta do restaurante. Se procurarmos uma pessoa por esses atributos, depois não podemos reclamar se a pessoa nos trata como objeto, se nos falta carinho, atenção. Escolhemos a companhia pelo atributo errado. Escolhemos pela estabilidade financeira, mas cobramos pela parte afetiva. Isso dificilmente vai funcionar.
Por outro lado, ficar com alguém apesar de tudo, gostar de alguém que não possua nada é igualmente complicado. “Na rua, na chuva, na fazenda, ou numa casinha de sapé” pode ser bonito em teoria, talvez não na prática. E, mesmo que o dinheiro falte, queremos pelo menos uma boa companhia, uma boa conversa, cumplicidade, pois só de sexo ninguém vive. (Ou muito poucos, pelo menos!)
O que chama a atenção que as músicas em questão (e outras tantas no mesmo roldão) pregam a maior importância da questão física ou da questão financeira em prol de outros atributos.
Há nessas músicas uma dicotomia entre o que a mulher espera de um homem (dinheiro, carro, cartão de crédito) e o que o homem pode lhe oferecer em troca (sexo). Não há espaço para outras qualidades (para mim mais importantes) como carinho, afeto, companheirismo, cumplicidade... valores sequer citados e provavelmente em baixa na sociedade de hoje.

sábado, 8 de março de 2014

MARIDO PERFEITO



A esposa chega em casa. Cansada após um dia de trabalho duro, os pés inchados por causa do salto alto. Joga a pasta em cima do sofá. Tira os sapatos e os deixa no meio da sala. Resmunga alguns palavrões num tom incompreensível, depois fala:
_ Luz!
E a luz acende.
Atira-se no sofá fatigada. Oito horas de trabalho monitorando computadores que fazem um importante trabalho não é fácil. Depois de um dia inteiro fazendo isso, ela não quer saber de mais nada.
O marido entra na sala. Recolhe os sapatos e os leva para o quarto. Volta à sala, pega a pasta que estava no sofá e a leva para seu lugar na estante. Enquanto isso, ela continua sentada no sofá, pernas abertas, girando o pescoço de um lado para outro para desfazer a tensão.
Ele senta-se em uma cadeira próxima a ela e pergunta solícito:
_ Como foi o seu dia, querida?
_ Um saco, como sempre... _ suspira ela num um fiapo de voz.
_ Quer uma massagem? _ pergunta ele com um tom de voz doce. Você está precisando relaxar...
_ Ah, por favor... _ responde ela com expressão de alívio.
Arrasta-se até uma cadeira na frente da dele, onde ela pode ficar de costas. Ele massageia as costas da companheira com delicadeza, com os cuidados do profissional mais dedicado. Ela suspira de tempos em tempos:
_Ai... Ai... Bom...Bom... Isso! Aí! Ai... Ai...
Ele pede que ela deite-se no sofá e lhe faz um pouco de shiatsu.
Terminada a massagem, ela já está completamente relaxada. Ele retira-lhe a roupa e vai até o quarto, voltando, pouco depois, com uma camisola confortável e chinelos nas mãos.
Ela se veste. Caminha até a cozinha. Chega até a geladeira e fala:
_Abra.
A geladeira abre. Ela pega uma garrafa d'água e toma no gargalo, enquanto ele arruma as almofadas do sofá para que ela fique confortável.
Ela volta da cozinha e deita no sofá. Ele aproxima carinhosamente o seu rosto do dela. A pele macia, bem barbeada causa um certo frisson na parceira. Ela geme suavemente. Ele recosta o peito descoberto sobre o tecido fino da camisola e faz um carinho de leve com suas mãos nos braços dela. Depois dá-lhe um longo e apaixonado beijo. Depois de alguns beijos e abraços, pega-a no colo e leva-a para a cama.

Uma hora depois, ela, deitada na cama, o olhar lânguido em direção ao teto, a sensação de relaxamento percorrendo-lhe o corpo. A mente quase em alfa.
Esse era o homem que Helena sempre pedira a Deus. Um homem meigo, terno, carinhoso... Delicado e másculo ao mesmo tempo. Bonito e inteligente. Atencioso como ele só. Capaz de satisfazer qualquer capricho dela. Um homem que não fica no sofá vendo futebol e esquece da vida. Um homem que não sai com os amigos. Um homem que dedica toda a vida a agradá-la. E, principalmente, um homem que não dorme após o sexo. Pelo contrário, um homem que, após um momento de amor ardente, abre um lindo sorriso, olha-a com ternura e diz baixinho que vai preparar o jantar.
A rotina de Helena tem sido assim desde que ela comprou seu marido atual. Com a extinção de todos os homens após uma hecatombe nuclear, as mulheres tiveram a ideia de construir algo que os substituísse. Mas não seria uma duplicata do homem antigo. Nada mais de roncos no sofá da sala. Nada de olhos reparando sua celulite aumentar a medida que a cinturinha diminui. Nada de barrigão de chope. Careca, nem pensar! Isso! Um homem perfeito! Bonito, músculos bem definidos, alto, forte e atraente. Em várias cores e modelos para satisfazer a todos os gostos.
Um grupo de cientistas se reuniu e, usando de seus próprios instintos e da opinião recebida por e-mail de várias mulheres de todo o mundo, foram escolhidas todas as qualidades que o novo homem deveria ter. Um robô exatamente igual ao homem que todas sempre sonharam. Um homem perfeito tanto por dentro como por fora: o verdadeiro homem com H maiúsculo!

Enquanto fica alguns momentos pensativa, o homem-robô prepara a comida. Algum tempo depois, entra na peça com um lindo sorriso, trazendo-lhe o jantar: um manjar dos deuses, tudo que ela sempre gostou, da forma como ela gosta que seja preparado.
Helena come com vontade. O sexo a deixou com fome. Ele retira-se cuidadosamente da sala. Ele sabe que ela não gosta que ninguém a olhe comer.
Depois da comida, ela levanta-se e olha no espelho. Algumas gordurinhas estão aparecendo na região do abdômen. Há alguma celulite nas nádegas. Ainda bem que seu homem não liga para isso. Ele a acha sempre bonita não importa o que ela faça ou o que aconteça.
Senta-se então frente ao espelho e começa a pentear o cabelo. Um jantar maravilhoso, uma transa divina, privacidade para pentear os cabelos com tranqüilidade, uma casa perfeitamente arrumada sempre... O que mais Helena poderia querer?
Foi então que ela pensou que seu parceiro poderia surpreendê-la trazendo-lhe uma rosa ou vindo por trás e fungando em seu pescoço... Não devia ter programado seu parceiro para não dar fungadas. Ela sempre achara aquilo irritante, mas, de repente, fora invadida com uma vontade súbita de receber uma fungada...
E, com um mísero pensamento, todo seu castelo de prazer e comodidade se desfez como um frágil castelo de areia ao sabor da maré. Frágil, insólito, mísero, infantil.

E Helena jogou a escova no chão com força. De que valia toda aquela dedicação de seu homem se era tudo programado? Ele não a amava verdadeiramente. Faria tudo exatamente igual a qualquer dona que o tivesse comprado.

Foi quando ela se viu, caçadora em uma savana urbana, qual uma ártemis pré-histórica, em pleno século 21, perseguindo com os olhos uma frágil presa masculina, acuada como um coelho. Ele, por seu lado, olhava a ela como uma presa e se via como caçador, crendo ser o sexo forte, o dominante. Qual dos dois estaria certo? Será que isso importava?

As mulheres daquela época sofriam muito, é verdade. Homens que não ligam após o primeiro encontro, havia aqueles que queriam apenas uma transa e nada mais. Não receber o carinho e o respeito merecido... Mas tinham homens que eram capazes de surpreendê-las, algumas vezes no bom sentido.
E viu-se de volta em seu quarto, atirada em uma poltrona perto da cama. Sabia que seu marido-robô não voltaria mais naquela noite. Iria deixá-la dormir tranqüila a noite toda e esperá-la sorridente, peito malhado e abdômen definido à mostra, barba bem feita, olhos verdes amendoados, que ela acordasse e fosse tomar seu café.

A não ser que ela levantasse da poltrona e fosse lá para pedir que ele fizesse mais alguma coisa, ele não voltaria mais naquela noite. Se pedisse mais uma transa, ele faria. Mas ele mesmo não era capaz de sentir prazer com isso... Se pedisse para que ele lhe preparasse uma refeição maravilhosa, não teria problemas. Mas ele próprio não teria fome... Se pedisse que virasse de cabeça pra baixo e assobiasse o hino do Flamengo... Céus! De súbito Helena percebera-se casada com um monstro!!!
Levantou da poltrona, mas não foi atrás do homem. Ao contrário, foi até a gaveta da cômoda e pegou um comprimido. Iria precisar de um para dormir naquela noite. De tempos em tempos, era acometida por aquele infeliz pensamento nostálgico que tudo tinha sido melhor no passado, no tempo em que os homens de verdade existiam. Tomou o comprimido e deitou-se. Em poucos minutos estaria dormindo e sonhando com coisas lindas. No dia seguinte, acordaria melhor e voltaria a apreciar as virtudes de seu parceiro como sempre fazia. Sem jamais ter a infelicidade de acordar com um sujeito mal-humorado, barba por fazer, hálito de túmulo, usando seu banheiro quando ela estava atrasada para o trabalho. Enfim, para que sonhar em regredir a um passado pré-histórico quando podia resolver sua depressão por falta do homem antigo com um simples comprimido?



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Parem o mundo: eu quero descer!

Porto Alegre. Calor intenso. Greve de ônibus. Greve dos Correios. Falta de água. Falta de luz. Tenho feito grandes trajetos a pé... e isso que estou de férias! Ir à casa de minha namorada? Quarenta minutos de caminhada. Ir ao dentista? Acabo pegando táxi. Volto a pé muitas vezes. Gastando mais dinheiro que o esperado com condução. Caminhando bem mais que pretendia, muitas vezes sob um sol forte demais para se fazer isso. Perdendo em dinheiro e em saúde. Suando muito em casa esperando que a luz volte. Ou parando o trabalho, quem trabalha em casa e precisa do computador.
As contas não chegam... mas você tem que pagá-las assim mesmo. O ônibus não passa... mas você tem que sair de casa mesmo assim. A luz acaba mas você precisa dela para tocar sua vida. A água termina... mas você precisa beber, tomar banho, lavar sua roupa.
O mundo parou a sua volta, mas você não pode parar de viver. Paro de viver porque o mundo parou? Entro em uma espécie de estado de hibernação e retorno quando o mundo voltar a girar novamente? Como determinados peixes cujos ovos sobrevivem em lugares secos e só eclodem quando há água? Infelizmente impossível.

Precisamos encontrar transportes alternativos ao carro e ao ônibus? Concordo. Água faltará e precisamos aprender a racioná-la? Não há dúvida. Mas olhando agora para a situação de Porto Alegre nos últimos tempos não há como não sentir-se tentando movimentar-se num mundo que parou. Esforçando-se para seguir em frente em um daqueles mundos em ruínas dos filmes de ficção.
Vontade de hibernar neste verão e só voltar com o mundo normalmente caótico em que já vivemos. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O "eu" do outro lado do espelho

João queria comer Teresa, que achava Raimundo um tesão, que se esfregava em Maria, que, apesar dos amassos, dizia-se casta e falava mal de Joaquim, que alfinetava todo mundo, inclusive de Lili, que não agradou ao público, porque não criou um personagem claro logo de entrada.
J. Pinto Fernandes, totalmente insosso, dizia estar ali pelo dinheiro, e não fazia nada, além de mostrar os peitos inchados e as coxas grossas enfiadas numa sunga e ganhou uma bolada.
O povo dizia que era tudo uma bobagem, que o pessoal era escolhido entre amigos do pessoal da tevê, que só tem gente mostrando o corpo e nada de conteúdo, mas continuava assistindo, pois, no fundo, ver as coxas de Fernandes ou a bunda de Maria (a suposta santa de fio dental) era o que realmente interessava.
As pessoas bebiam, se drogam, falavam bobagem, mostravam os corpos exercitados, faziam sexo com vários, liberavam-se em diversos aspectos de amarras sociais, morais.
O povo talvez não fizesse tanto sexo, não fosse a tanta festa, não se envolvesse abertamente com tantas pessoas, mas realizava essas fantasias vendo os outros fazerem. No fundo queria estar lá. Não podendo, assistia e fantasiava.
A pornografia não totalmente escancarada, a novela pré-escrita com ares de realidade, faziam as pessoas comentar sobre vidas de televisão, como se fossem reais. Não há vida dentro da televisão. Não há realidade com câmeras ligadas e microfones. Não há  um eu na intimidade frente a um payperview.
Eu gostaria de ser bonito, de ter um abdome com gominhos, de transar com as mulheres mais bonitas, de passar o dia na piscina, na academia e em festas e sonhar que isso é minha realidade. A realidade não provém da satisfação direta e primárias das necessidades básicas. Comemos, dormimos, transamos, bebemos, nos exercitamos sim. Mas esperamos um pouco mais de nossa realidade.
Mas discutimos a vida inventada dos outros nesses moldes como se fossem vidas cabíveis e aproveitamos nossas noites desse forma.
Os leões estavam na jaula. Andares lânguidos, jubas à mostra. O espectador se sentia superior por estar lá fora, ria da fera enjaulada, mas temia e invejava esse lado fera no íntimo. Queria ser uma fera. Mesmo que seja uma fera numa jaula. Uma fera é uma fera numa savana, numa floresta, não numa jaula.